O Club Sport Marítimo zarpou em 1910 rumo à glória. Sempre “por mares nunca dantes navegados” por equipas insulares, o Leão do Almirante Reis rugiu mais alto do que qualquer Adamastor que se erguia como parede de mar para impedir a passagem. Mas nós éramos, somos e para sempre seremos “marítimos” que forjaram o seu próprio tridente e o empunharam perante qualquer antigo deus dos mares. Ousámos quando outros temiam, resistimos quando tantos exigiriam franquia para a liberdade de navegar. E navegámos por cabotagem contra a sabotagem até que todos se renderam ao inevitável: a 15 de Maio de 1977, há exactos 46 anos, um povo lançou âncora, pousou as cordas navais e esticou as cordas vocais para que Portugal inteiro ouvisse: “Lá vêm, lá vêm os nossos maravilhas, os endiabrados campeões das ilhas”.

Décadas de travessia culminaram naquele dia maior na História do Marítimo e da Madeira. Mais do que um jogo, mais do que a subida à I Divisão Nacional, o Marítimo entrou em campo para, definitivamente, afirmar os plenos direitos do Portugal insular. Protagonista desportivo e social inigualável, a Autonomia que a Madeira conquistou em 76 muito deve à luta sem quartel dos “marítimos”. A 15 de Maio de 1977, a ascensão do Marítimo ao mais alto patamar do desporto-rei português assumiu contornos jamais vistos na Madeira. Foi a vitória de “um povo que sabe lutar”, a conquista de um lugar cativo à mesa dos maiorais que não precisaram de intérpretes para traduzir o que dissemos com sotaque ainda mais vincado: a gente já apoitou.

Quem lá esteve, jamais esquece. Quem não esteve também não. São incontáveis as histórias que se confundem com mitos e lendas, narrativas que se aproximam de um realismo mágico. Muitas horas antes das 16h, hora prevista para o início do confronto entre o Marítimo e o Olhanense, a subida até aos Barreiros transformou-se em peregrinação. Dois dias depois das celebrações do 13 de Maio, milhares convergiram para o Caldeirão para uma aparição anunciada: o Maior das Ilhas a caminho da I Divisão. Foi a maior enchente jamais registada num evento desportivo realizado na Madeira. Os números oscilam, não há como ter certezas. Bancadas cheias, pista de tartan transformada em extensão da bancada, gente que arriscou bastante em postes de iluminação e árvores, uma vertigem justificada porque era preciso ver o Marítimo.

Liderados por Pedro Gomes, o Marítimo alinhou com Amaral na baliza, Olavo, Eduardo Luís, Bira, Rui Gomes, Nélson, Ângelo, o capitão Eduardinho, Calisto, Norberto e Arnaldo Silva. Porfírio, o guarda-redes suplente, foi chamado a jogo aos 83 minutos, tal como Noémio, o goleador madeirense que substituiu outra glória conterrânea, Nélson. O Marítimo tinha pressa, muita pressa, para assegurar um desígnio que tinha décadas, mas nunca acusou velhice. Aos 20 minutos, “20 minutos à Marítimo”, o adversário já brandia a bandeira branca. 3-0. A cada golo, invasão pacífica, como se o rectângulo de jogo fosse o rectângulo continental, até então palco exclusivo da I Divisão. Estavam esgotados os primeiros 7 minutos de jogo quando Norberto, após cruzamento de Eduardinho, cabeceou para o fundo das redes forasteiras. 6 minutos depois, Norberto volta a bater João Luís, o guardião algarvio. À passagem dos 20 minutos, Calisto ouviu o chamamento do Caldeirão que lhe dizia “infilhtrate-te, Calisto”. E ele infiltrou-se na História gloriosa do Marítimo e, com a fúria de quem sabe o que são as passas do Algarve, chegou à linha de fundo e cruzou para o golo de Nelson. O Club Sport Marítimo, a Madeira e o Portugal insular estavam na I Divisão, mas os “maravilhas” queriam mais. Na segunda-parte, para fechar a contagem, Noémio assiste Arnaldo que assina o quarto golo verde-rubro. Faltavam, então, 7 minutos para o apito final. Há quem diga que foram 3 apitos finais, os mesmos que ressoam quando um navio aporta no Funchal. Agora, era uma jangada de pedra, a Madeira, quem chegava ao destino que já estava escrito nos cadernos de bordo secretos de Cândido Gouveia, o “Candinho do Marítimo”, fundador da maior força colectiva madeirense.

A todos os obreiros da eternidade, obrigado. 

Da esquerda para a direita, no primeiro plano: Jaime, Nélson, Arnaldo Silva, Tininho, Arnaldo Carvalho, Eduardinho (cap), Norberto, Chico, Calisto, Amaral, Fernando Rodrigues e Humberto. De pé: Porfírio, Arnaldo Gonçalves, Ivo, Agostinho (técnico), Emanuel Silva, José Miguel Mendonça (Presidente), João Júlio (massagista), Pedro Gomes (técnico principal), Olavo, Eduardo Luís, Bira, Noémio, Ângelo, Rui Gomes, Heim Alfred e Adelino Heliodoro Rodrigues (Chefe do Departamento de Futebol)